O ARGUMENTO DECISIVO
16 de Novembro de 2012
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Em 2001, no texto O Que Penso Sobre o Aborto declarei considerar a maioria dos abortos ilegais como atos de covardia e assumida incompetência.
Mas o que antes eu mais sentia que racionalizava, agora encontra sua argumentação plena, que demonstra ser o aborto, no caso de mera rejeição subjetiva após conduta voluntária e consciente do risco de gravidez, eticamente indefensável exceto em casos bem específicos. O que significa que ainda sou a favor a descriminalização de outras possibilidades, como a recentemente obtida para o caso de anencéfalos.
Essa posição se baseia no
Argumento de Donald Marquis, que tem o mérito de ser simples de entender e, ao que tudo indica, invencível a não ser que se negue premissas que baseiam praticamente toda a ética elementar.
Não a toa, os
esforços de refutá-lo costumam simplesmente não entendê-lo, outros parecem
desviar o assunto
ou ser
incompreensíveis, tentando intimidar por complexidade. Isso explica porque o argumento tem sido sistematicamente omitido pela maioria dos abortistas.
A versão original é um pouco extensa e faz uso de alguns conceitos que embora não sejam difíceis, podem soar um pouco estranhos. Por isso preferi desenvolver uma adaptação auto suficiente. Creio que ela não apenas torna o exame do Argumento Marquis mais simples, como até mesmo o dispensa. Mas recomendo a leitura do
original, até porque o debate gerado costuma utilizar sua terminologia.
Começa com uma simples pergunta.
Por que um assassinato é errado? Por que mesmo no caso de um náufrago ou eremita que ninguém sabe que exista e não faria falta a outrem, matá-lo é errado mesmo de forma totalmente instantânea e indolor?
Uma boa resposta é que, matando-o, nós lhe roubamos o seu Futuro.
Pressupor que pessoas tem direito ao próprio futuro é tão intuitivo que frequentemente achamos que quanto maior esse futuro, maior o dano da morte. A morte de jovens é quase sempre mais trágica que a morte de idosos. Em geral, é mais nos casos de assassinatos violentos contra anciãos, que acrescentam o vício da covardia contra os menos capazes de se defender, que costumamos também nos chocar num nível equivalente ao dos infantes, que compartilham essa vulnerabilidade.
Mas não parece questionável que em geral a morte da criança é pior que a morte do adulto. Pode até haver exceções, como adultos muito valiosos, ou situações mais específicas. Mas a morte infantil nos atinge como uma tragédia muito mais terrível, mesmo que seja do tipo instantânea e indolor.
Pode haver outros motivos, mas o mais marcante é o fato de que a criança viveu muito pouco, tinha toda a vida pela frente. Seu futuro é, em geral, quantitativamente maior!
Assim, um aborto seria especialmente mais grave por roubar praticamente TODO o futuro de alguém.
FUTURO DESEJÁVEL
Não qualquer futuro, e sim um aceitável. A maioria admite a idéia da morte misericordiosa de quem tem um futuro claramente horrendo.
Mas tais casos são raros e facilmente identificáveis. Se o futuro não é claramente onerado por ameaça gravíssima, é ao menos minimamente desejável. Assim, a maioria das pessoas deseja a vida mesmo em más condições.
Só a perspectiva de sofrimento extremo costuma levar ao desejo de morrer, e isso deveria bastar para invalidar argumentos que tentem justificar o aborto pela mera expectativa de um mau futuro para o feto.
Mesmo miseráveis, crianças abandonadas, prisioneiros, enfermos etc, querem seu futuro, e por isso a ética mais elementar lhes confere esse direito. Seu FUTURO é, mesmo que em mínimo grau, DESEJÁVEL.
E o fato de haver os que rejeitam seu próprio futuro e prefiram a morte, em nada afeta a regra geral. Uma pessoa tem direito a recusar seu próprio futuro, mas isso não dá a outros o direito de roubá-lo à sua revelia. Posso querer abrir mão de meu dinheiro e doá-lo. Mas ninguém tem o direito de me tomá-lo à força.
Em tempo. Esse argumento só vale contra o aborto de fetos humanos viáveis, não para animais, que não tem expectativa de futuro, ou fetos com defeitos que comprometam sua humanidade.
Que nos leva ao próximo ponto. Pois encerro aqui o argumento baseado em Marquis, restando apenas prevenir os desentendidos mais básicos.
HUMANIDADE
Tirando detalhes irrisórios e pontos por demais abstratos, a melhor forma de contestar esse argumento é negar a humanidade do feto. Mas humanidade costuma ser dita em 4 sentidos básicos: Biológico, Mental, Cultural e Ético. Os últimos dependendo dos primeiros. (Trato disso de modo mais detalhado e com terminologia mais sofisticada em EstÉTICA DOURADA - HUMANISMO)
Negamos ao psicopata perverso sua humanidade no sentido Ético, negamos às meninas selvagens criadas por lobos sua humanidade Cultural, podemos negar também ao recém-nascido ou ao feto sua humanidade Mental, mas a Biológica só pode ser negada com uma incompletude do corpo que impeça totalmente seu desenvolvimento cognitivo.
Negar a humanidade do feto é um escapismo que na melhor das hipóteses se dá por ignorância, na pior, por fraude intelectual. Não há diferença essencial entre um feto de 3 meses e um de 6 exceto o grau de desenvolvimento. Desde a formação de um zigoto viável até a morte natural na velhice, a vida humana é uma Continuidade impossível de ser dividida com precisão. E se o desenvolvimento tem alguma influência na valoração da vida, é no sentido inverso, fazendo com que o infanticídio seja mais grave que o homicídio de adultos.
Claro que matar um feto que ainda não possa sentir dor é menos nocivo do que um que o possa, mas como já vimos, mesmo a morte instantânea e indolor não remove o dano do assassinato. Menos sentido ainda tem a petição de princípio de negar a um feto o direito de se tornar uma pessoa pelo fato dele ainda não ser uma!
O que deveria estar em pauta não é se um feto é ou não humano, pois isso, no sentido mais fundamental ele é, e muitíssimo menos quando a vida começa, que é uma questão pura e simplesmente estúpida, não importa se na boca de um analfabeto ou de um ministro do STF.
E isso pelo puro e simples fato de que NÃO EXISTE DEFINIÇÃO PRECISA DE VIDA!!! Tente definir 'vida', e passará o resto da vida tentando! Nem o Direito, nem a Biologia, nem a Filosofia conseguem definir 'vida' de um modo consensual.
Temos uma idéia razoavelmente boa e operacional do que é um Ser Vivo, mas a de Vida em si é extremamente mais problemática. De mesmo modo como temos uma idéia do que são "coisas boas", ou de que é "fazer o bem", mas é impossível definir o BEM em si!
Para dirimir qualquer dúvida, note que embora o argumento da potencialidade humana seja útil, ele pode ser por completo descartado, pois podemos demonstrar que até mesmo ações sobre objetos inanimados podem ser criminalizadas se estes forem necessários à manutenção da vida.
Se alguém consciente e deliberadamente impede um evento que tem como objetivo permitir a vida a outrem, incorre em participação em homicídio. Esconder as chaves de um carro normalmente não é crime. Mas e no caso de alguém o fazer propositalmente sabendo que o mesmo é a única chance de levar uma pessoa acidentada, correndo risco de vida, ao hospital?
Um feto, não importa em que estado esteja, irá se desenvolver até mesmo contra a vontade e colaboração da mãe. É preciso uma ação deliberada para impedi-lo. Se seu futuro inevitável é um ser humano, então como que atentar contra ele, mesmo que não o consideremos ainda como tal, não é no mínimo proceder em prol de um assassinato?
O que deve ser discutido é se o aborto é um homicídio justificável, tal como
Naomi Wolf, famosa autora feminista pró-escolha,
muito sensatamente sugere, e como ocorre em outros casos previstos em lei. E de fato o é em alguns. Por isso o admitimos em casos de risco de vida à mãe, e outros.
Assim, o meu argumento, bem como o Argumento de Don Marquis, se limitam apenas a afirmar que o aborto implica num assassinato, que se não for devidamente justificado é anti ético. O argumento não se pronuncia diretamente sobre a validade de sua criminalização ou não, porque a esfera Ética e a Jurídica, embora estejam fortemente associadas, ainda assim são distintas.
AUTONOMIA E RESPONSABILIDADE
Até aqui apenas estabeleci a plena humanidade biológica do feto e consequentemente que aborto é necessariamente infanticídio. A clareza intuitiva desta idéia é a força motriz da resistência ao aborto, e é fácil entender por quê. É isso que os movimentos pró-escolha evitam, fugindo para temas de segurança ou saúde pública, impondo uma descontinuidade arbitrária.
Mas estabelecer a anti ética do aborto exige abordar a Responsabilidade, que não pode ser desassociada de Autonomia. Ninguém pode ser responsável por algo sobre o qual não tem controle, a ninguém deveria ser permitido autonomia sobre algo pelo qual não se responsabiliza.
Tal intuição baseia o consenso da permissividade do aborto em caso de estupro, pois neste a mulher não pode ser responsabilizada de ter engravidado voluntariamente ou por negligência, resultando em situação distinta da mera rejeição subjetiva ao feto. De modo similar, só somos obrigados a prestar socorro à uma vítima de acidente quando somos diretamente envolvidos no mesmo, quer por tê-lo causado, ou por estarmos no local onde ocorreu. Ninguém é obrigado a sair de casa para socorrer um acidentado do outro lado da cidade.
Disso, penso que deveria-se adicionar ao menos duas outras possibilidades de aborto legal.
Uma para casos de comprovada incapacidade mental para relacionar sexo e reprodução, o que já é parcialmente feito em casos de gravidez de mulher mentalmente incapaz e meninas de idade inferior a 14 anos. Mas penso que poderia ser estendido também às raras situações de jovens que são criadas em tal grau de ilusão e opressão que não puderam desenvolver sequer uma percepção das possíveis consequências do ato sexual.
A outra, mais plausível, quando puder ser comprovado que a mulher tomou as medidas contraceptivas necessárias, mas estas falharam por motivo alheio a seu controle. Por meio de comprovação médica do uso de métodos anticoncepcionais, talvez por testemunho do parceiro ou similar.
Mas o verdadeiro benefício dessas medidas seria reforçar a noção de que não se pode exigir o direito à autonomia, nem mesmo sobre o próprio corpo, sem o dever de se responsabilizar pelos próprios atos. Não temos o direito de exigir que nos forneçam drogas, que nos mutilem ou mesmo nos matem por uma questão de autonomia, então porque uma mulher deve ter sobre um outro ser humano que está em seu corpo?
Essa idéia previne argumentos bizarros que parecem considerar que o feto é um parasita que foi colocado adentro como se fosse um alien, quando na verdade é o resultado, evitável, de uma conduta livre e consciente que no mínimo tem que assumir o risco. E isso se aplica também ao pai.
A gravidez pode ser dolosa ou culposa. Cabe então o direito a tal autonomia extrema quando falhou na responsabilidade de se precaver? O direito à autonomia sexual não deveria pressupor o dever de arcar com as consequências desse direito?
A liberação sexual não deveria estar acompanhada da responsabilidade reprodutiva? E a gravidez indesejada não é, exatamente, resultado da incapacidade de exercer a própria autonomia?
Por isso, é imprescindível trazer ao centro do tema a questão da responsabilidade sobre a concepção. Algo que curiosamente é raro de se ver em discussões a respeito. Bem como é preciso eliminar as inúteis reflexões a respeito do momento em que começa a vida ou mesmo do limiar da potencialidade humana.
SUBJETIVIDADE E BEM JURÍDICO
Todo o exposto, embora esteja num arranjo próprio e original, não é de fato inédito por estar ao menos implícito em grande parte do debate.
Agora quero apresentar uma reflexão final, que eu saiba, totalmente inédita.
A ordem jurídica protege a vida humana de forma largamente incondicional. Assassinato é condenável não importam as condições ou nossas opiniões sobre o assassinado ou o assassino. Assim, onde o aborto é liberado incondicionalmente sem justificativa objetiva, e especialmente onde é feito às custas do Estado, ocorre curiosa anomalia institucional.
Todo o aparato social, jurídico e estatal está pronto a proteger a gravidez por todos os meios disponíveis. Ninguém, sob hipótese alguma, terá o direito a eliminar o feto por motivo subjetivo, não importa nossa opinião sobre ele, sobre a mãe ou o pai.
Se há todo um arcabouço institucional pronto para ser acionado ao menor sinal de ameaça ao bem jurídico, como é admissível que o mesmo seja instantaneamente anulado, e invertido, por uma mera mudança de opinião?
A simples sutileza subjetiva da mãe com relação ao feto desencadeia reações completamente diferentes no aparato sócio jurídico estatal, que pode estar totalmente mobilizado em proteger o feto, ou até mesmo totalmente mobilizado em eliminá-lo.
O estado garante sua liberdade e vida, e para fazer o contrário, é preciso fato objetivo de crime cometido materialmente. O estado garante sua propriedade, e mesmo que você decida abrir mão dela voluntariamente, ao estado não cabe ir recolhê-la ou lhe livrar dela. E para que ele a retire, também é necessário um fato objetivo.
Mas o aborto por pura e simples volição da mãe, sem um fato concreto como sofrer um estupro ou ter um feto com má formação, tem a peculiaridade ÚNICA, principalmente se custeado estatalmente, de fazer todo o aparelho estatal se mover em direções diametralmente opostas sem nenhum critério objetivo!
Resta a situação estranhíssima onde toda a ordem jurídica fica fundamentada numa volição mental que pode ser alterada abrupta e arbitrariamente, podendo mobilizar e desmobilizar o aparato institucional à cada variação de humor. Mesmo uma gravidez totalmente planejada e proposital pode ser revertida sem qualquer satisfação, nem mesmo
ao pai da criança que desde antes voluntariamente se propôs a assumir a paternidade.
A mãe poderia até mesmo dar início à todo o procedimento, e após todos os preparativos, na mera de operação, decidir abortar o aborto, para no dia seguinte mudar de idéia de novo, e de novo, sem qualquer critério, invertendo incessantemente todo os esforços do sistema jurídico.
Em que outro caso ocorre algo sequer remotamente similar?
O SIMBOLISMO DO ABORTO
Marcus Valerio XR
16 de Novembro de 2012
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